FALAPET nº19 — Maquiavel, Ficção e Realidade: “Mera Coincidência?”

PET Economia UFF Campos
9 min readJun 6, 2023

--

Essa resenha tem como intuito abordar a questão política, sob a perspectiva da obra O Príncipe, de Maquiavel, relacionando-a com a trilogia literária contemporânea Grisha, da autora Leigh Bardugo, que inspirou a série da Netflix, fenômeno mundial, Shadow and Bones. Nesse sentido, correlaciona-se a esfera política e econômica, bem como seus efeitos sociais, destacando a relação intrínseca dessas instâncias.

Nicolau Maquiavel, Niccolò di Bernardo dei Machiavelli, era republicano e renascentista. Estava inserido no momento em que Florença estava dividida, em razão das invasões, principalmente da França. Nesse contexto, Florença vivia uma República, no entanto, havia disputas pelo poder, e consequentemente, os Médici conseguiram destituir esse sistema e instaurar um governo autoritário. Após ser torturado e banido, Maquiavel, a fim de conquistar as graças dos governantes, escreveu, sua obra mais famosa, O Príncipe, ficando conhecido como um cientista político, visto que se desprendia da moral cristã, focando na eficiência e eficácia do líder. Assim, a tese do livro dá-se como os principados são conquistados, mantidos e conservados.

Em primeira análise, ao aprofundar o pensamento de como alcançar o poder, é possível destacar duas formas: pelo povo e pelos grandes. Consoante Nicolau Maquiavel, a melhor maneira de chegar no governo seria pelo alto escalão, uma vez que agradar uma quantidade enorme de indivíduos seria inviável, bem como as pessoas possuem mais expectativas naqueles que elevaram. Entretanto, era preciso cativar a população, pois, apesar da maior facilidade de satisfazer aqueles poucos, com cargos no governo, esses eram instáveis e conspiravam contra o príncipe, porém se o governante fosse admirado, esses últimos não arriscariam provocar a ira da sociedade. Além disso, para Maquiavel na Regra Política não existe apoio incondicional, por isso, não seria tolerável deixar a realização aos generais, é necessário que o príncipe faça as coisas por si mesmo, sendo seu próprio comandante. O Príncipe em pessoa é quem deve constituir-se capitão; (MAQUIAVEL, p. 46, 2019). Nesse sentido, encarregar-se do seu exército é imprescindível para adquirir e conservar o poder.

Assim, para dar ênfase na teoria Maquiavélica, observa-se os livros da trilogia Grisha, escritos pela autora Leigh Bardugo. A história passa-se em um universo fictício, mais especificamente, em Rakva. Nesse âmbito, o país está fragilizado com a guerra durante anos, defendendo suas fronteiras — uma com Ferdja e a outra com os Shu -, além da dobra, também chamada de não-mar, que foi criada pelo personagem Alexsander Morozova, como tentativa de ampliar seu poder, e está expandindo e “engolindo” as cidades, transformando os cidadãos em monstros. Ainda assim, o rei Lantsov esbanja em festas e ignora os rakvanos. — o que de acordo com Maquiavel, em sua teoria, transformaria o governante em sórdido. Portanto, um Príncipe deve gastar pouco para não ser obrigado a roubar seus súditos; para poder defender-se; para não se empobrecer, tornando-se desprezível; para não ser forçado a tornar-se rapace. (MAQUIAVEL, p. 57, 2019)

Dessa forma, os personagens Darkling (Alexsander Morozova), general do exército grisha e o sacerdote do rei aproveitaram a situação para manipulá-lo, com o intuito de apropriar-se do trono. No entanto, os dois exerceram táticas diferentes, o primeiro era temido pela população e em razão disso, consegue influenciar o exército, bem como Alina Starkov (a grisha mais poderosa do universo grisha), além de infiltrar uma espiã, envenenando o governante por anos, em pequenas doses. Em contrapartida, o sacerdote cria mitos e utiliza a religião como alicerce para conquistar a comunidade. Assim, observa-se que os dois usaram meios que Maquiavel afirmava ser essencial para adquirir o poder, mas cometeram um erro que este considerava terrível: subestimar o inimigo.

É possível perceber que consoante a tese de Maquiavel, aquele que possuía mais chance de subir ao trono era o Darkling, mas este não previu a hipótese, em que a Alina se rebelaria contra ele. Além disso, não percebeu outro elemento que estava por vir, o filho mais novo do rei, Nikolai Lantsov, que havia ficados anos adquirindo recursos e influência para ser o regente. De acordo com a teoria Maquiavélica, era sempre preciso prever os problemas, visto que as coisas sempre mudam e nunca confiar em aliados. Ao se desesperar por seus planos saírem do controle, Alexsander se tornou um genocida, matando aqueles que prometeu proteger, perdendo a maioria do seu apoio, abrindo, assim, caminho para o adversário. Do outro lado, apesar de ter seguidores, o sacerdote não possuía força bruta suficiente para combater dois oponentes.

Após o triunfo é necessário mantê-lo. Deve, portanto, o Príncipe fazer-se temer de maneira que, se não se fizer amado, pelo menos evite o ódio. (MAQUIAVEL, p. 60, 2019). Com o objetivo de ser amado, é fundamental que utilize o que Maquiavel chama de dimensão simbólica no poder — o governante precisa simular si mesmo, ou seja, não é necessário que ele tenha todas as qualidades ideais, mas aparentar possuir. Outrossim, ser capaz de comunicar-se com o imaginário da época, produzir mitos e mover suas vontades, para que aceitem seu poder. Com a finalidade de conseguir fazer uso desses meios é preciso ser prudente, tal como dispor de virtu, para enfrentar a fortuna.

Consoante Nicolau Maquiavel, é imprescindível que o Príncipe disponha de prudência, isto é, ter sabedoria na ação, inevitavelmente ser cauteloso e audacioso, mas se não conseguir ser os dois, preferencialmente audacioso. É também necessário ser virtuoso, isto é, significava visualizar suas ações e consequentemente se manter no poder, ser viril, ter exatidão e eficiência. Dessa maneira, o regente conseguiria dominar a fortuna — o inesperado, algo que precisa ser controlado.

Destarte, a teoria maquiavélica ressalta que um governante só conseguiria conquistar e manter-se no poder se conseguisse administrar seu exército, ser temido e amado pelo povo, sempre desconfiar dos inimigos, quanto dos amigos, além de conseguir exercer a arte da manipulação e possuir virtude e prudência nas decisões.

Regresso ao universo Grisha, após analisar o pensamento maquiavélico percebe-se os principais erros daqueles que não conquistaram e nem se mantiveram no poder. Como citado anteriormente Darkling não conseguiu administrar a fortuna, já o sacerdote não escolheu a audácia, mas a cautela. Já o rei de Rakva não conseguiu continuar no trono, pois, além de confiar em seus potenciais aliados e acreditar na “falsa paz” — fator que acarretou a morte do príncipe herdeiro Vasily Lantsov, não se preocupou com seus soldados, o que o obrigou a abdicar por seu filho — Nikolai Lantsov.

Contudo, como Nikolai — também conhecido como Sturmhond — alcançou esse poder cobiçado por tantos? Todos os seus adversários usaram a manipulação — elemento fundamental para Maquiavel -, inclusive ele, entretanto, algo o diferenciou. Lantsov começou a ganhar influência no meio marítimo, formou uma tripulação, assim como soldados, além de conquistar a confiança do exército de seu pai. Ao trazer Alina Starkov para seu lado — como sua noiva — obteve admiração do povo, uma vez que esta era vista como uma santidade -, tornando-se muito amado. Nesse sentido, o príncipe soube manusear, aquilo que Maquiavel considerava tornar um governante eficiente, ligar-se aos mitos do contexto.

Todavia, foi preciso manter-se no trono — sem a ajuda da Alina e com questões internas e externas para serem resolvidas, que ameaçavam seu governo. Então, o príncipe criou um Triunvirato, com as grishas mais poderosas, para ficar ao seu lado, tornando-se temido pelas nações inimigas. Além disso, criou alianças com os outros países, no entanto, sendo um governante prudente e nunca acreditando na ideia de “falsa paz”, como o rei anterior. Como todos os regentes, esse cometeu inexatidões, que refletirá em sua regência mais tarde, um desses grandes erros foi deixar com que a Igreja criasse muito poder.

Ao analisar o personagem Nikolai Lantsov, percebe-se que algumas de suas ações divergiam com os conceitos maquiavélicos. Consoante Maquiavel, era preferível ser temido pelo povo do que amado, no entanto, Lantsov era adorado pela população, e temido, somente, por seus inimigos, o que compreende ser mais vantajoso, diferentemente da tese maquiavélica, que apontava ser mais benéfico ser temido por ambos.

Ao analisar o contexto, o que realmente importaria seria a virtu, ao recapitular todos os exemplos citados acima, nota-se que não adiantaria estratégia, nem manipulação, se lhe falta sabedoria em suas ações. Nesse sentido, o que diferencia um oponente de outro, seria saber controlar imprevistos e a tomada de decisões, como é possível constatar que Nikolai não teria alcançado o poder se não soubesse manejar os infortúnios ao longo do caminho.

Outrossim, a dimensão simbólica no poder teria que ser algo muito bem estruturado, uma vez que ao não conseguir desempenhar seu papel, o governante seria odiado por todos. Não obstante, mesmo se obtivesse sucesso em seu desempenho, o povo nunca estaria completamente satisfeito com um governo, e ao tentar se manter, constantemente, no poder, o Príncipe poderia se perder em sua própria manipulação, tornando-se tirânico.

Impende, pois, que o Príncipe de Maquiavel não pode ser apenas uma pessoa. Nesse ponto de vista, seria impossível um indivíduo ter todas as características que Maquiavel impõe serem as ideais para um governante eficiente, pois o excesso de conspirações seria impossível de controlar. Nos primeiros anos poderia ser viável, mas com o passar dos anos iria fechar-se contra o regente. Percebe-se, assim, que Nikolai não teria conseguido manter seu poder sem o Triunvirato, mas, mesmo com esses aliados, ainda não foi possível controlar a igreja. É irrealizável suprimir todas as forças que ameaçam o governo do príncipe. Nessa circunstância, assim como Maquiavel ressalta, a tomada de decisão é importantíssima para conseguir impedir que a situação cresça ainda mais, no entanto, como o governante seria capaz de manipular todos ao mesmo tempo? Ainda, impedir que seus aliados voltassem contra ele? Observa-se que mesmo ao utilizar a violência total — como Maquiavel propõe -, com o objetivo de impor sua autoridade, como ocorreu no Brasil, na Ditadura Militar (1964–1975), o regente não conseguiria manter-se por muitos anos, pois a população o odiaria — sentimento que Maquiavel diz para evitar ao máximo — e se rebelaria contra ele.

Assim, ao compreender todo o pensamento trabalhado anteriormente, infere-se que é essencial que o governante conquiste, em primeiro lugar, o povo. Conquanto, é preciso também aliar-se ao seu exército, mostra-lhes respeito, para que estes não se voltem contra o príncipe, dado que o mais perigoso seria a força armada incitar a grande massa populacional para uma rebelião. O primeiro passo do inimigo seria agitar o exército do governante contra ele. Nessa perspectiva, o ideal seria fortalecer a admiração daqueles que já estão em seu alcance — como a população e os soldados -, a fim de fortalecer seu Estado, uma vez que ao fortificar suas questões internas iria reprimir rivais internos, tanto quanto externo, dado que as outras nações recuariam ao enxergar um principado consolidado. Ademais, o governo precisa desprender-se aos poucos da igreja, por meio de um bom governo, até que esta perca gradualmente a influência. Ainda assim, enfatiza-se, novamente, que isso não será realizável se o governante não possuir a virtu — que Maquiavel desenvolveu em sua obra.

Ao interligar a teoria de Maquiavel com o livro da trilogia Grisha percebe-se que o poder político está diretamente relacionado à estrutura econômica. Um governante ruim traz instabilidade para o país, afetando a condição econômica da população, muitas vezes atrelado a violência e o aumento das desigualdades. Como foi possível notar ao descrever a situação em que o país ficcional Rakva se encontrava com a guerra de poder que foi travada e as más decisões, além da própria guerra do país com outras nações, deixando extrema condição de vulnerabilidade e miserabilidade em seus cidadãos. Ao conquistar o Governo, Nikolai consegue, juntamente com seus aliados — o Triunvirato -, reestruturar o país, proporcionando uma melhora nas condições dos rakvanos, socialmente e economicamente, a partir de alianças comerciais entre países e sua cooperação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Edição do Kindle. Edipro, 15 de janeiro de 2019.

CHISHOLM, Robert. A ética feroz de Nicolau Maquiavel. In: QUIRINO, Célia, VOUGA, Claudio & BRANDÃO, Gildo Marçal (orgs). Clássicos do pensamento político. São Paulo: Edusp, 1998, p.51–76.

WEFFORT, Francisco. (1989). Os clássicos da política. São Paulo, Ática.

Teoria do conhecimento. Maquiavel por Renato Janine Ribeiro. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=EGXfu9BeaU4&feature=emb_logo> Acesso em: 6 de mar. 2022

Café filosófico CPLF. Maquiavel e a arte de enganar-se. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ca3KMPG-Zwg > Acesso em: 10 de mar. 2022

Casa do Saber. Os fins justificam os meios?. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kfy49sMHWEg > Acesso em: 10 de mar. 2022

BARDUGO, Leigh. Trilogia Grisha. 1ª edição. Gutenberg. 1 de dezembro de 2015.

Letícia Silva Souza

O FalaPet é uma publicação de resenhas do PET Economia da UFF Campos.

As opiniões emitidas nesta publicação são de inteira e exclusiva responsabilidade do autor, não expressando, necessariamente, o ponto de vista do grupo PET Economia/UFF Campos sobre os temas tratados.

--

--

PET Economia UFF Campos

O PET Economia se trata de um Programa de Educação Tutorial Institucional, que visa o desenvolvimento de atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão acadêmica.